Foi difícil escolher por onde começar neste 1º Capítulo.
Torres Novas é um livro de História aberto: desde as mais recentes descobertas arqueológicas pela equipa do conceituado João Zilhão; passando pela mística da Vila Cardilium; o período da Reconquista; a resistência contra Castela por Gil Pais; a história de vida de Carlos Reis, até às já conceituadas Feira Medieval e Feira dos Frutos Secos... Enfim, há muito, mas muito para falar.
Por isso, decidi começar por uma obra de arte arquitetónica, bem no coração da "Capital dos Frutos Secos", que surpreende quem por lá passa. Escolhi-a para ser a primeira por isso mesmo, porque quando a vi pela primeira vez, fiquei pasmado! (Se bem que, como já sabem, mostrem-me boa arte da antiguidade; idade média ou idade moderna e eu ficarei certamente pasmado. Por isso aqui saliento que fiquei mesmo muito pasmado!)
Bem-vindos à Igreja da Misericórdia de Torres Novas.

(farei um resumo no final)
Foi no dia 31 de outubro de 1534 que se deu a fundação da Santa Casa da Misericórdia de Torres Novas, reunindo os bens das sete confrarias da Vila: (Santa Maria do Vale, Santa Maria dos Anjos, S. Pedro, S. Bento, de Jesus, do Salvador e de S. Brás).
No seu humilde começo, os rendimentos obtidos eram à base de esmolas, pelo que foi necessário pedir à Coroa Portuguesa uma ajuda mais substancial, resultando na anexação da Gafaria da Vila (pequena nota: Gafaria era o local onde se cuidava dos gafos - pessoa que padecia de lepra).
Mais tarde, em 1538, o Prior das quatro freguesias de Torres Novas, D. Jaime de Lencastre, doa a Ermida dos Fiéis de Deus à Santa Casa.
Estão assim dados os primeiros passos para, algumas décadas mais tarde, se dar a fundação da nova Igreja da Misericórdia no local da Ermida dos Fiéis.
Agora, um pouco de História dentro desta história: o Prior D. Jaime de Lencastre era irmão do 1º Marquês de Torres Novas, D. João de Lencastre e ambos eram filhos de D. Jorge de Lencastre, 2º Duque de Coimbra. Este, por sua vez, era filho bastardo do Rei D. João II. É de relembrar que D. João II só teve dois filhos com importância reconhecida: um único filho legítimo: o Príncipe herdeiro D. Afonso, que morreu antes do Pai, com 16 anos; e um filho bastardo: D. Jorge de Lencastre. Desta forma, quando D. João II morreu em 1495 sem filhos legítimos, o trono passou para o seu primo, o Rei D. Manuel I. Os títulos de 2º Duque de Coimbra e 1º Marquês de Torres Novas foram criados por este Rei a favor dos seus primos, já depois do ano 1500.
Por esta altura, estamos em plena época dos Descobrimentos: Já ocorreram as descobertas do Brasil e do caminho marítimo para a Índia.
Voltando a Torres Novas. Quem reinava na altura do início da construção da Igreja da Misericórdia era o filho de D. Manuel I, o Rei D. João III (Avô do Rei D. Sebastião). Neste período, o Prior D. Jaime de Lencastre é ordenado Bispo de Ceuta, continuando o trabalho do seu antecessor: Frei Henrique de Coimbra, o célebre missionário que celebrou a 1ª missa católica no Brasil, aquando da chegada com Pedro Álvares Cabral, missa essa realizada no dia 26 de Abril do 1500.
Estes episódios, da vida do Prior D. Jaime de Lencastre, serviram de tema para a realização da Feira Medieval de Torres Novas, na edição de 2016.
Seguindo para a dita Igreja, subimos a escadaria exterior de estilo barroco, que nos leva do Largo General Baracho até ao Adro da Igreja. Aqui podemos observar uma bonita curiosidade: estamos na presença do Cruzeiro do Adro com as insígnias da Paixão de Cristo, estrutura ali colocada em 1572. São cerca de 450 anos de História à frente dos nossos olhos!

Deixando o cruzeiro e observando, finalmente com toda a atenção, a fachada lateral desta Igreja (classificada Imóvel de Interesse Público desde 1986) podemos desfrutar do Pórtico Renascentista que temos à nossa frente. Depois de fundada no séc XVI, a Igreja sofreu grandes remodelações no séc XVII e este pórtico Maneirista, com a data 1618, é resultado disso mesmo.

O Pórtico está ladeado por 4 colunas de ordem Jónica, que por sua vez suportam toda uma estrutura que abriga o episódio da "Visitação": Um nicho em forma de concha, com esculturas das parentes: Santa Isabel e Santa Maria.
Este nicho é semelhante a outros existentes nas Misericórdias do distrito, nomeadamente na de Constância e Tancos.
Mais um pouco de História: As Misericórdias e o episódio da Visitação estão intimamente ligadas por isso mesmo: (muito sucintamente), A Visitação retrata a passagem da Bíblia onde, logo após a Anunciação, Santa Maria desloca-se para Hebrom, Jerusalém, para visitar a sua prima Santa Isabel e o marido desta, Zacarias. O objetivo desta visita seria levar a Graça Divina e a Misericórdia a Isabel e ao seu filho ainda não nascido, o futuro S. João Baptista.
Passando o Pórtico para dentro da Igreja, podemos "ficar de queixo caído".

Estamos na presença de um extraordinário altar, todo ele em talha dourada. A Nave também é uma visão bonita, totalmente revestida a painel de azulejos do séc XVII.

De frente para o altar-mor, do nosso lado esquerdo, o lado do Evangelho, temos o altar dedicado a Nossa Senhora das Dores. No lado direito, o lado da Epístola, temos o altar dedicado ao Nosso Senhor dos Passos.
Estas duas figuras são essenciais para a Procissão dos Passos, a procissão Torrejana que faz a ponte entre a Igreja do Carmo e a Igreja da Misericórdia. Procissão esta que se realiza no tempo da Quaresma e que não via a luz do dia desde 1953. Viria a ser retomada em 2018.
Ao centro, no altar-mor da Misericórdia, podemos observar o Sacrário com a figuração alusiva ao episódio da "Visitação".
Tiramos agora, por momentos, os olhos do altar-mor e vamos observar o resto da nave da Igreja.
Damos três passos para trás, afastamo-nos do altar e o que vemos?
Mais um momento rico de arte: Duas fantásticas pinturas do séc. XVII.
Do nosso lado direito, A Ressurreição de Lázaro.

Do lado esquerdo, A Cura do Paralítico.

Duas boas representações do conceito da Misericórdia.
Olhando agora para o teto, observamos os belos caixotões do ano 1678. São trinta caixotões decorados com motivos florais, vasos de flores e laçarias. Curiosidade: no seu conjunto fazem um jogo cruzado, em que uns são a representação "espelhada" dos outros.

Passando do teto, olhamos agora para o chão. Aqui mais uma curiosidade: podemos reparar que, aquando das primeiras remodelações, foram usadas antigas lápides para cobrir o chão da Igreja.

Do nosso lado direito podemos ainda observar o Cadeiral dos Mesários da irmandade, destacando-se o lugar do provedor, encimado pelo brasão. Os Mesários eram os constituintes da Mesa da Santa Casa da Misericórdia, havendo destaque para o lugar do Provedor da Santa Casa.

A ladear o Cadeiral, podemos observar mais uma obra de arte: o fantástico Presépio barroco do séc XVIII, atribuído à grande escola de Machado de Castro. Este Presépio em terracota tem representando a Sagrada Família protegida por ruínas arquitetónicas, com a "Adoração dos Pastores" no primeiro plano e apresentando um grande "Cortejo dos Reis Magos", em linha descendente.

História: Para os pouco atentos, Joaquim Machado de Castro foi tão e somente o criador da magnífica Estátua Equestre de D. José I, na Praça do Comércio.
Este presépio pertenceu, em tempos, aos antigos proprietários da Quinta de São Gião e viu o seu percurso culminar numa doação à Misericórdia de Torres Novas.
Fazendo agora o resumo:
= Igreja da Misericórdia - fundada no séc XVI, após doação da Ermida dos Fiéis de Deus em 1538.
= Cruzeiro do Adro - data de 1572.
= Pórtico lateral Renascentista, data de 1670, encimado com escultura da Visitação.
= Grandes remodelações no séc XVII, ao estilo barroco.
= Nave revestida a painel de azulejo do séc XVII.
= Se virados para o Altar-mor temos:
# Lado Esquerdo, o lado do Evangelho. Grande pintura do séc XVII - A Cura do paralítico. Altar dedicado a Nossa Senhora das Dores.
# Lado Direito, o lado da Epístola. Grande pintura do séc XVII - A Ressurreição de Lázaro. Altar dedicado ao Nosso Senhor dos Passos.
= Do Lado Direito temos ainda:
# Cadeiral dos Mesários;
# Presépio, estilo barroco, séc XVIII. Atribuído à escola Machado de Castro.
= No teto: caixotões de madeira do séc XVII.
= No chão: algumas lápides reutilizadas nas primeiras remodelações.
Espero ter despertado o vosso interesse em visitar esta obra de arte arquitetónica e o concelho de Torres Novas em geral, que tem tanto para ver.
Eu gosto particularmente do Castelo de Torres Novas.
O quê, Torres Novas tem um Castelo? Alguém pergunta.
Então! É claro que tem. Muito bem conservado e proporciona uma boa vista para a cidade.

Não sabiam? Então já sei o que falar na próxima!
Até breve.
